'Meu primeiro desenho' by  Anucha [1991]

Fogos-fátuos

31/05/18

Questionado sobre sua curiosidade quanto aos pensamentos e sonhos do autor (*), de seu criador como personagem, o cavalheiro não respondeu logo. Seu olhar se perdeu nos efêmeros plasmas azulados entre as chamas da lareira, pálidos fogos-fátuos, mas apenas seus olhos se detinham ali. Sua mente descortinava a inédita questão da relação entre as personagens e seu inventor.

Passado um tempo, disse à dama: é complicado... veja, não sei seu nome e nem você sabe o meu. Pior, nenhum de nós sabe o próprio nome, pela simples razão de não ter ainda o autor escolhido um nome para nós... Pode ir até o final sem nos dar, a cada um de nós, um antropônimo, previsto no dicionário como "nome próprio de pessoa ou de ser personificado", o nosso caso, de personagens, seres não batizados por pai e mãe e, muitas vezes, nada sabemos de nossa ascendência... Tudo depende do autor, tudo pode, ou não, passar por sua cabeça. Você acha possível influenciar suas "divinas" decisões? Possível à personagem interferir na mente do autor?

Ao terminar, o cavalheiro sem nome se ajeitou no sofá próximo à poltrona mole, onde a dama se estendia a imprimir um leve movimento circular a seu copo. Desaparecera-lhe o ar alegre e quase zombeteiro. Ela molhou os lábios em seu drinque e ponderou: ah, tudo, absolutamente tudo que nos ocorre, nossas falas, pensamentos e ações, tudo passa antes pela mente do autor. Ele é como Deus criador do céu e da terra e dos bichos e das gentes e dos micro-organismos.

Os dois bicaram seus aperitivos e, então, o cavalheiro refletiu: acho que qualquer interferência de uma personagem na mente do autor existiu antes como ideia em suas próprias lucubrações sendo, portanto, via de mão única.

Por isto mesmo, nada impede uma personagem de especular sobre os devaneios de seu autor, argumentou a dama.

continua

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