Evoluções

21/11/97


Oh, dona Sabrina, vejo sua alegria e seu riso, esse leque maluco de plumas coloridas mas, vou ter que decepcioná-la: apesar do título, não venho falar de escolas de samba nem contar casos escabrosos de outros carnavais...

Já devo ter dito que em outra encarnação fui fotógrafo. Hoje tento olhar para trás, apenas para confirmar o fato, mas a distância me parece infinita e permaneço na dúvida: será?... Nos cacos que sobram e nos atravancam o caminho, há indícios seguros de que além de fotógrafo meti-me a ensinar fotografia, mesmo antes de aprendê-la! Sim, a prova material de que tudo não passa de um devaneio louco continua lá, material, torta e horrorosa como há quase 30 anos atrás: um poste. (Permitam-se esclarecer que já não me preocupa o mínimo o fato de, via de regra, me tomarem por louco. Antes, ainda me perguntava: será?... serei? Hoje, isto me parece irrelevante, pois acredito que somos mesmo, todos, um pouco mais, um pouco menos, cada um do seu jeito, salvo, talvez, os que estão internados... Daquela época, lembro que um aluno contou ter vontade de fechar o carro no meio do congestionamento e ir embora a pé. Voltaria, tarde da noite, para buscar o carro. Comentou: morro de vontade de fazer isso. Por que acho que louco não é quem deixa o carro trancado no meio da rua, louco é quem fica dentro do carro parado horas a fio... Detalhe importante: isso foi na São Paulo do início do anos setenta! Assim, acabei acostumando e aceitando ser visto como louco... É uma fama que vem comigo da adolescência...) Fechado o parêntese, voltemos ao poste, à prova de que além de fotógrafo meti-me mesmo a professor...

Vi o poste da laite (para um carioca, vai ser sempre poste da laite - eu sei, dona Sabrina, mas eletropaulo é demais!) vi o poste no início deste ano, por circunstâncias de trabalho. Continua lá, para quem quiser conferir: defronte ao que já foi o número 492 da rua Batatais, quase esquina com a alameda Campinas. Está pintado com faixas horizontais em preto, amarelo e prata (teria branco também?) Ficava em frente à tal escola de fotografia, enfoco, que funcionava ali, naquele número. Na calçada, para esconder o muro da casa, fizemos um tapume de tábuas grossas, pintadas com aquelas cores (no primeiro ano o azul substituía o amarelo) com o logotipo da escola. A casa não existe mais, é óbvio, pois foi construído um prédio imenso no lugar de várias casinhas daquelas duas ruas, mas o poste está lá e, para minha perplexidade, pintado como eu o pintei... É por causa dessas coisas que ouso afirmar que fui fotógrafo... e como olho pra trás e só vejo a estrada unir-se num ponto do horizonte, digo que foi em outra encarnação. Que fique claro tratar-se apenas de um jeito de falar, maneiras de dizer. Para mim, não faz sentido cogitar sobre eventuais vidas (parece-me tão absurdo que vacilo até ao escrever!) sobre vidas passadas e reencarnações...

Agora, vou tentar resumir a história dessa crônica. Eis que chega uma carta impressionante: onze páginas, como se fosse a gravação de uma seção de análise. Um desabafo desesperado. Um uivo de alguém profundamente ferido pelas misérias do que se costuma chamar amor e paixão. Alguém que precisava, para sobreviver, contar todas as suas desventuras e contou, com muitos detalhes. Ora, queria falar da carta. Foi tornada pública, pelo menos no ambiente de trabalho da vítima da paixão. A própria pessoa tomou essa iniciativa e, após demitir-se, distribuiu, fora de si, cópias da carta para todo mundo... É um relato cru de todo tipo de miséria de que o ser humano é capaz. Recebi a carta de um amigo, que trabalha para essa firma e ganhou uma cópia também, mesmo não sendo funcionário. Mandou-me com a pergunta: é, ou não, o caso de se pensar num roteiro para um curta metragem...

Acontece que a carta chegou com vários trechos truncados (aqueles sinais que aparecem quando o programa pensa que somos nós o computador). Isso, só porque o meu amigo usa um computador com outro sistema operacional... (Tenho visto, nas revistas, que existem montes deles, muito mais do que supõe nossa ignorância de cronista...) Por causa disso lembrei que vivi bem de perto e bem por dentro uma guerra semelhante, quando a fotografia deu o grande salto das velhas, confiáveis e poderosas roleiflexes para as single lens reflex. Depois de muita briga, hoje, grande parte das variações e maluquices que apareceram na época, simplesmente não existe mais. Ninguém fala mais dos métodos de leitura, dos tipos de fotocélula (inclusive quanto à sua composição química ideal), do melhor posicionamento no corpo da câmara ou do ângulo de leitura, de nada. Absolutamente nada.

Nesses 30 anos houve uma seleção "natural" (sempre com fortes componentes de poder do dinheiro pesando na balança!) Extinguiram-se, como os dinossauros, os que não conseguiram se adaptar (ao melhor projeto ou às condições impostas pelo mais poderosos) e, o que é mais importante: estabeleceu-se um padrão. Algum dia ninguém vai perguntar se o seu computador é isso ou aquilo - é um computador e pronto! Enquanto esse dia não chegar, continuaremos a receber cartas e mensagens com trechos truncados ou impossíveis de "abrir" e eles continuarão a brigar, de foice, pelo nosso dinheirinho... Precisaria um outro Darwin para explicar.

Tá certo, dona Sabrina, tá certo: não deixaram de ser escabrosos... e, é fato, de outros carnavais...

 



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